O
momento ainda está recente para uma análise segura, mas cabe a primeira
reflexão.
A
direita tem um projeto de país e, com o golpe, criou a oportunidade
institucional e midiática de implantá-lo. Desgastou-se tão rapidamente quanto
era possível supor, tal o caráter antipopular e antinacional das medidas e os
fatos recentes mostraram que está politicamente acuada. E muito antes de
completar a implantação do projeto.
Seria
ingênuo imaginar que iria simplesmente ajoelhar-se. Fez a sua primeira grande
ofensiva, a parte hegemônica da grande mídia à frente.
Enquanto
a esquerda comemorava a nada desprezível bofetada da Tuiuti, aproveitando o
Carnaval para terminar de desmoralizar a coalisão golpista, inclusive aos olhos
do mundo, a direita também se valia do mesmo carnaval para armar o bote.
Passou
para a opinião pública a imagem de “guerra civil” no Rio de Janeiro, tendo como
vítima a hipersensível classe média, sempre disposta a mergulhar no pânico,
ainda mais na presença de um negro, um miserável, alguém que, por si só, já lhe
representa uma ameaça. Fui genro de uma mulher que as poucas letras não impediam
de esclarecer muito bem como esse raciocínio leva ao racismo. Ela se definia
como racista e explicava que “tratamos tão mal os negros e por tanto tempo que
só podemos esperar que eles aproveitem a primeira chance para vingar-se”.
O Rio
de Janeiro não pegou o Brasil de surpresa, tornando-se violento a partir deste
carnaval. Hospedado em casa de meu irmão, em 1979, peguei emprestado o carro e
fui me deliciar com Chico Buarque no teatro Casa Grande, sendo advertido para
que levasse no bolso o “dinheiro do ladrão” e não parasse sequer em sinais
fechados. Ao explicar que só havia parado em um deles porque duas viaturas
policiais estavam na porta de um bar naquela esquina, ouvi meu irmão,
assombrado, reclamar: “Pior! Você escapou de ter sido assaltado!”
Mas lembre-se
que recente levantamento apontou 19 cidades brasileiras entre as mais violentas
do mundo e o Rio não está nessa lista.
Ao
anunciar a intervenção, Michel Temer declarou textualmente que “as cenas do Carnaval
revelaram uma agressividade muito grande e uma desorganização social e até
moral muito acentuada. As pessoas lá não têm mais limites”.
Isso é
verdade?! Tenho grande número de amigos e parentes vivendo no Rio de Janeiro.
Não vejo um só que “não tem limites”, ainda mais pela alegada “degradação
social e moral”.
A
cidade sofre dos mesmos problemas de tantas outras metrópoles brasileiras,
vítimas de um processo acelerado de urbanização, em que não era oferecida
qualquer perspectiva inclusiva, tendo os migrantes que se acomodarem nas
cidades do jeito que as sociedades locais toleravam. Ou seja, obrigadas a
sobreviverem em condições de subemprego, habitando em condições subnormais, sem
acesso a serviços básicos de saúde e educação, sem proteção de segurança
pública e suportando péssimos e caros serviços de transportes. No caso do Rio e
sua região metropolitana, isso ocorreu com uma população ao menos duas vezes
superior às de grande concentrações urbanas do País.
A
manifestação de violência nessa sociedade de suprema contradição não é novidade
para os cariocas, para os brasileiros ou mesmo em outros países.
A
escalada do tráfico e a contaminação do aparelho policial (e judicial), além
dos meios políticos, também são suficientemente conhecidas. Mas não há como
negar que, salvo exceções pontuais, o Brasil gasta fortunas para fazer apenas uma
aparência de combate ao tráfico.
É um
país em que uma mulher como Jéssica Monteiro, moradora de uma casa em que se
abrigavam várias famílias, em pleno trabalho de parto, é presa por portar
quatro porções de maconha e o juiz, alegando como agravante que ela não exerce
“atividade lícita” (não lhe ocorreu que o Brasil tem 13 milhões de desempregados?),
decreta a sua prisão preventiva. Junto com a criança e deixando em casa outra
de 3 anos. Prisão domiciliar? Nem pensar!
Enquanto
isso, continua sem “esclarecimento” a detenção de um helicóptero pertencente a
um senador, conduzido por um assessor parlamentar de seu filho deputado e que
era abastecido com verba de mandato. O helicóptero estava abastecido com 450 kg
de pasta básica de cocaína e o fato se deu há mais de 3 anos.
Há
quase um ano, um avião foi apreendido com 664 kg de cocaína, após decolar da
fazenda de um senador, licenciado para exercer o cargo de ministro de Estado.
Os
dois flagrantes foram identificados como tráfico internacional de drogas e
ocorreram porque os traficantes vinham sendo monitorados pela Polícia Federal.
Isso não sugere que fosse rápida a elucidação dos dois casos?
Não há
dúvida de que o tráfico tem enorme força no Rio de Janeiro. Não poderia ser
diferente em uma megalópole, que se coloca como grande centro consumidor, ainda
mais contando a permanente afluência de enormes levas de turistas. É também uma
obviedade que o tráfico caminha junto com a violência e tem indiscutível poder
de contaminação das forças policiais. Mas dá para acreditar que a sede desse
tráfico está nas favelas?
A
verdade é que uma mentira eclodiu neste momento e isso se deu para justificar a
tal intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro. E isso se dá
com a parceria (seria melhor dizer com a cumplicidade) do governador do Estado.
Quem
desmentiu foi o Instituto
de Segurança Pública (ISP), na última sexta-feira (16), com dados sobre a criminalidade ao longo do período.
A
entidade revela que, entre 2015 a 2018 (ver matéria do Diário do Centro do
Mundo), o total de ocorrências caiu de 9062 para 5865.
Os roubos
a pedestres tiveram o menor índice nesses anos: 1062 em 2018, 1485 em 2015,
1739 em 2016 e 1178 em 2017.
A
redução no número de furtos a pedestres foi surpreendente, ocorrendo 584 casos,
contra 2144 em 2015.
As lesões
corporais dolosas caíram de 1808 para 1297 desde 2015.
O registro
por furto de celulares vem se reduzindo. Foi de 711, 644, 506, respectivamente
nos anos de 2015, 2016 e 2017. Neste ano, foram registrados 394 casos.
Um dado
é também significativo fora do período carnavalesco. Em dezembro de 2017, houve
66 vítimas a menos de letalidade violenta (casos de homicídio doloso, homicídio
decorrente de oposição à intervenção policial, latrocínio e lesão corporal
seguida de morte), com uma queda de 10,9% em relação a dezembro de 2016.
Talvez por isso, o
general Walter Souza Braga Netto assumiu o comando da intervenção com um
discurso destoante do usado pelo presidente, em perfeita articulação com a
parte expressiva da mídia que apoiou a medida. Disse que a situação no Estado
“não está tão ruim” e, embora falando pouco, deixou claro o que ocorre: “Muita
mídia”.
A
professora Jaqueline Muniz, especialista em segurança pública da Universidade
Federal Fluminense, em entrevista à Globo News, disseca as ações militares anteriores
no Rio, desde 1992, e avalia que esta não é para funcionar. Chama a atenção inclusive
para que ela é anunciada pouco mais de uma semana após a apresentação de um
plano estratégico de segurança pública da PM do Estado.
Várias
interpretações estão colocadas para que se entenda o que se pretendeu com a
intervenção.
- É o
início de uma escalada militar que pode levar à intervenção em vários outras
unidades da Federação e, chegam a crer alguns (paranoia de quem viveu a
ditadura?), à própria implantação de um novo regime militar em nível nacional?
- É
uma jogada de desespero político que poderia levar até (quem sabe?) a não
realização de eleições, dada a certeza de que não há como manter o governo,
pois novas medidas impopulares só levariam a fortalecimento ainda maior de
Lula, que tende a ganhar o pleito ainda que não tenha o seu próprio nome na
urna?
- É
tão só uma manobra política para evitar a votação da reforma da Previdência e,
portanto, a humilhação diante de uma derrota parlamentar?
- É,
ao contrário, uma tentativa de disseminar o terror entre parlamentares que ora
se sentem à vontade para peitar o presidente e rejeitar a votação em tal
mudança no sistema previdenciário?
- É
uma grande jogada midiática para recuperar o fôlego diante de uma opinião
pública que não dá mais um tostão de crédito ao presidente e seu governo?
De
certo, foi um tiro na asa no candidato que tem o nome em segundo lugar nas
pesquisas de opinião pública. Parece ter buscado um contato direto com os que
vinham manifestando apoio a suas propostas. Com isso, apropriou-se do discurso
e o deixou em um vazio em que o máximo a fazer será aplaudir a intervenção.
Mas é
claro que o Palácio do Planalto (com os seus parceiros) criou uma “intervenção
militar localizada” em cima de uma mentira para buscar recompor-se
politicamente, em um período pré-eleitoral, no momento em que tudo favorece os
adversários e os parceiros parecem sair discretamente da sala para não serem identificados
com o presidente.
O que
ocorrerá? A ver.
Fernando Tolentino
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