“Isto aqui não é o Brasil”, teriam gritado
manifestantes argentinos em protestos contra mudanças na Previdência há duas
semanas. A provocação foi noticiada por 247, Globo e vários outros meios.
Chamou a atenção que os brasileiros não reagiram à palavra de ordem dos “hermanos”,
pondo em dúvida a propalada animosidade contra os vizinhos do Sul.
Muitos de nós sabíamos o que eles queriam dizer. Vivemos
idênticas adversidades: perda de direitos e esmagamento por uma política
neoliberal que só interessa aos grandes interesses econômicos do mundo, à
frente os Estados Unidos. Não era uma agressão, mas uma convocação. O sentimento
natural entre nós foi o de admiração pelo espírito de luta deles e vergonha por
nossa apatia.
Afinal, a revolta nos brasileiros poderia ser maior.
Quem impõe o retrocesso lá é um presidente eleito. Aqui, foi alguém que traiu a
presidenta com a qual foi eleito, uniu-se aos derrotados na eleição e assumiu o
programa deles.
O método é avassalador. Foi constituída uma decisiva
maioria parlamentar, por vezes à base de corrupção aberta e ofuscada pela
maioria da mídia, que esteve associada ao golpe e doura o modelo imposto. A tática
é tal qual o “fogo de saturação”, quando uma tropa, com hegemonia militar,
submete os inimigos a um ataque sucessivo, não lhe dando oportunidade para se
reaglutinar. De fato, pode-se criticar tudo na atual composição do Congresso
Nacional, mas dificilmente tenha havido época em que deputados e senadores trabalharam
tanto. A tal ponto que uma rápida retrospectiva de pouco mais que um ano
certamente implicaria em algum esquecimento importante.
Questionado apenas por uma denodada minoria, o
Executivo cortou recursos de diversos programas de atenção aos segmentos populares:
Agricultura Familiar; Minha Casa, Minhas Vida; FIES; PróUni; Farmácia Popular;
Pronatec; Bolsa Família; a assistência da Previdência Social e tantos outros. Cortou
ainda recursos de diversos órgãos, especialmente nas áreas de saúde, cultura e
educação, inviabilizando praticamente o funcionamento, por exemplo, das
universidades federais.
Itens básicos para a população, como energia
elétrica, gás e gasolina têm seus preços puxados violentamente para o alto, em
índices muitos superiores à inflação. Enquanto isso, o salário mínimo tem o seu
menor reajuste em 24 anos.
Com o apoio do Congresso, aprovou inúmeras matérias,
inclusive emendas à Constituição. Impediu a elevação de investimentos públicos
acima da inflação durante nada menos que 20 anos; mudou a estrutura curricular
do ensino médio, colocando os egressos do ensino público em condição de
inferioridade com relação aos do ensino privado; liberou a contratação terceirizada,
inclusive no serviço público, com riscos seríssimos para os trabalhadores,
total instabilidade no emprego, sua provável subordinação a processo políticos
de escolha, desqualificação dos serviços, entre outros malefícios; destruiu o
sistema de direitos trabalhistas, conquistados há mais de 70 anos, praticamente
impedindo o recurso à Justiça, fragilizando a estrutura sindical ao máximo e
estimulando o desemprego, além de permitir que empregados percebam remunerações
aberrantemente baixos, insuficientes para sustentar-se e às suas famílias; criou
benefícios para empresas que não cumprem as obrigações fiscais e
previdenciárias; favoreceu a grilagem no campo; liberou a exploração de
petróleo para empresas estrangeiras, aí incluído o Pré-Sal, que permitiria o
financiamento das áreas de saúde e educação; privilegiou empresas estrangeiras
que vão explorar petróleo no Brasil, dispensando-as de produzir equipamentos no
país e ainda dispondo de isenção fiscal para a importação deles.
Junte a isso a entrega de setores estratégicos para
o controle estrangeiro, como a Base de Alcântara para os Estados Unidos, e a
permissão de manobras militares de tropas norte-americanas na Amazônia.
Mas o seu maior compromisso com o sistema financeiro
que bancou a rasteira na ordem constitucional é a Reforma da Previdência, talvez
pior que a imposta aos “Hermanos”. Extingue na prática o direito à
aposentadoria para os trabalhadores, empurrando as camadas de maior renda para o
sistema privado. De fora, para viabilizar a aprovação e a sustentação do
governo ilegítimo, ficam juízes, procuradores do Ministério Público, militares,
deputados e senadores.
A demonstração da hegemonia golpista chega ao ponto
de o Congresso curvar-se duas vezes diante de acusações comprovadas de
corrupção do presidente.
Tem alguma dúvida de que os argentinos estavam com a
razão?
UM GOLPE PARA QUEBRAR
A RESISTÊNCIA DOS BRASILEIROS
Não é despropositada
a sensação de impotência dos brasileiros. Afinal, elegeu um governo, que não
escondeu o discurso no palanque, e o viu adotar políticas diversas no primeiro
ano de mandato. Ou não foi assim que começou o segundo mandato de Dilma
Rousseff? Ainda assim, restava a possibilidade de cobrar o compromisso. O que
viu foi o Congresso simplesmente abortar o governo, diante da postura cúmplice
do supremo, da colaboração frenética do Tribunal de Contas e do apoio
entusiástico de quase todos os veículos de comunicação.
Para dar sustentação
a esse golpe, a mídia conseguiu excitar incrivelmente parte das camadas médias e
superiores da população, colocando grandes manifestações nas ruas. A motivação
foi o discurso duvidoso de alegada corrupção. Essa argumentação que não foi
falsa por não existir, mas por não ter vínculos claros com o governo de Dilma
ou o de Lula.
O real é uma
burocracia que historicamente conspira contra o Estado e o patrimônio público,
associada a grandes empresários. Para drenar recursos para o setor privado, conta com a
solidariedade dos partidos políticos, inclusive com a “legalidade” do
financiamento privado de campanhas.
Se houve participação
de integrantes do Partido dos Trabalhadores, a verdade é que tal burocracia já
servia durante décadas aos grandes partidos brasileiros e deles se valia. A tal
ponto que esses partidos resistiram tenazmente ao fim do financiamento privado
proposto pelo PT e outros partidos de esquerda.
Mas é fato que os governos
de Lula e Dilma implantaram uma estrutura de transparência e controle da
máquina pública, justamente para inibir essa corrupção. Não bastante, era
insofismável a atitude da presidenta Dilma de absoluta intransigência com
desvios, de tal forma que nenhuma autoridade denunciada permaneceu no cargo,
ainda que as acusações ainda não tivessem sido apuradas.
A presidenta Dilma
foi fustigada diariamente por uma imprensa que parecia inclemente diante de suspeitas
de corrupção e que tentava incessantemente emplacar no PT a imagem de
envolvimento descarado (e exclusivo) com essa apropriação dos recursos públicos.
O Tribunal de Contas mostrava-se comprometido com a tentativa de mostrar uma
presidenta incapaz de controlar a máquina estatal. A chamada Operação Lava Jato
(unindo o juiz Moro, uma tropa de igualmente exibidos procuradores e policiais
federais também nada isentos politicamente) trabalhava para dar sustentação às
acusações da mídia. O Congresso Nacional cumpria a ameaçava do candidato
derrotado Aécio Neves e atravancava o funcionamento do governo, ao mesmo tempo em
que a Câmara cumpria uma agenda apelidada pelo seu próprio presidente de “Pautas
Bomba”, com a finalidade manifesta de criar obstáculos à ação de governo.
Passado o golpe, o
que a população vê é um sistema de poder totalmente azeitado: Executivo, Legislativo,
Judiciário e grande mídia articulados no mesmo projeto neoliberal. As massas
revoltadas de 2015 recolheram-se e não mais se mostraram incomodadas com a
corrupção ou as mudanças impostas pelo governo.
LULA JÁ É PRESIDENTE
No primeiro momento,
manifestantes foram às ruas com o Fora Temer e o presidente acabou confinado no
rodapé das pesquisas de popularidade. Mas os brasileiros entenderam rapidamente.
O Fora Temer dependeria da anulação do “impeachment”, para o que não teriam
coragem os ministros do STF. Ou exigiria a aprovação de sucessão com Diretas Já,
o que não passaria pelo Congresso. Daí, o afastamento do presidente
significaria um tiro na água, a entrega do governo para o presidente da Câmara,
não mais que uma imitação barata.
A conclusão foi
óbvia. Quem representa o contrário do que o golpe impôs ao País? Quem melhor
representa a vitória da eleição de 2014 e dos compromissos levados à campanha? Quem
é que o poder instaurado com o golpe é capaz de fazer tudo para que não volte à
Presidência?
Esta foi a saída encontrada
pelos brasileiros.
A reação foi se
espalhando, um pouco timidamente no início, represada por farto noticiário
calunioso em todos os horários de rádio e de TV, em praticamente todas as
edições impressas de grandes jornais.
Mas a cada nova
sondagem de opinião pública a vontade dos brasileiros foi se cristalizando. De
repente, já era impossível dizer que o nome de Lula era apenas uma evocação dos
programas sociais para os miseráveis. Os tradicionalmente altos índices de
rejeição retraíram-se e, de mais rejeitado, Lula acabou sendo, entre os nomes
mais citados pelos entrevistados, o de menor rejeição.
A composição social
de seus possíveis eleitores também foi se alterando. O mais recente
levantamento do instituto Ipsos mostra uma alavancagem nas classes A e B de 14%
para 35% em somente seis meses. De 26% para 42% na mostra da população de nível
superior.
Já não é possível
desconhecer: Lula cresce entre os que se iludiram com a hipótese de afastamento
de Dilma. Ficou claro o que o golpe trouxe e pretende trazer para os
brasileiros. Os manifestantes favoráveis ao “impeachment” estão divididos entre
os que, envergonhados, apenas se calaram e os que já enxergam Lula como uma
esperança. O apoio ao governo ilegítimo ficou restrito a um pequeno grupo que
sequer se manifesta.
Não vingou também a pesada
e incessante artilharia contra o PT. Em um país sem tradição de voto
partidário, o PT é o preferido de quase um em cada cinco brasileiros. Para se ter
uma ideia, o segundo partido em ordem de preferência é o PMDB (um eleitor em
cada 20 prefere a legenda) e o terceiro é o PSDB, escolhido por um em cada 25.
Cresce ainda a
rejeição ao juiz Moro, que assumiu ares de “pop star” e o número de eleitores
que assume votar em um nome indicado por Lula caso ele não possa ser candidato.
Tradução: na impossibilidade
de mudar imediatamente a tragédia em que foi afundado, o brasileiro escolheu
uma “tábua de salvação”, representada por Lula. E o faz não porque represente
algo místico, mas justamente por conhecê-lo muito bem.
Já nas ruas,
expondo-se à população de diferentes regiões do País, Lula pode até estar
representando um papel que algum analista veja como benéfico para os golpistas.
Basta que esse observador acredite na capacidade de sublevação das massas do
país, pois sua existência como alternativa eleitoral estaria impedindo uma
explosão imediata da população.
É como se o
brasileiro comum veja Lula como se já fosse o presidente. Faltaria apenas o
protocolo: submeter a eleições em que ganhará. É como se entendesse que todo o
mal não importa, pois será corrigido por Lula.
Não é um devaneio. As
pesquisas identificam o que postei como ilustração deste artigo, uma mensagem
de Whatsapp em que uma amiga brasiliense (saliente-se que Lula tem, na capital
do País, os menores índices do Brasil) relata diálogo com famílias em que faz
um programa assistencial. Lula figura ivariavelmente como a esperança daquelas
pessoas.
Ouvi isso também ontem
de um frentista, que concluiu agora o seu curso de Letras e atribui a
oportunidade às políticas de Lula e Dilma. Há poucos dias, um desconhecido
aproximou-se de mim, ao perceber que eu escutava uma mensagem de política no
celular. Ao notar que era simpática a Lula, esperou o áudio terminar e
comentou: “Eu voto em Lula de qualquer jeito” e foi adiante com um discurso,
que combati: “Dizem que rouba, mas os outros roubam e não olham pelos pobres
como ele”. Lembrei que o acusam sem qualquer prova e ele insistiu: “Se
provarem, eu voto nele de qualquer jeito.”
BASTA TER LULA COMO
FAVORITO?
O primeiro problema desse
amplo sentimento é contar a eleição como ganha. Ainda não há sequer a certeza
de que Lula conseguirá concorrer. Isso pode ser superado se Lula, não sendo
candidato, oferecer um nome que preencha o seu vazio, espalhando a mesma
sensação de confiabilidade.
O segundo – e maior –
já foi identificado e denunciado pelo próprio Lula. Não basta ele se eleger. É
preciso que tenha uma base no Congresso capaz de ajudá-lo no resgate de tudo o
que o golpe vem destruindo e avançar para propostas com as quais vem se
comprometendo, uma delas a regulação dos meios de comunicação. Lula recorda que
assumiu a Presidência em 2003 com 91 deputados. E é preciso lembrar que a
bancada do PT não cresceu nas eleições seguintes, embora contasse com apoio do
PCdoB e de políticos progressistas de outras bancadas.
Em seu favor, Lula
terá, junto com a eleição para presidente, a renovação de dois terços das vagas
de senadores. Se os seus eleitores perceberem a importância de garantir uma
maioria consistente no Senado, o seu futuro mandato poderá ser facilitado.
Mas é preciso atenção
especial para a eleição de deputados. Os eleitores em geral não costumam votar
partidariamente e não é comum a maioria dos eleitos levar em conta a vontade ou
interesse de seus eleitores durante os seus mandatos. Em um sistema de votos
proporcionais, figuras como Tiririca ou o cantor Sérgio Reis costumam
desequilibrar o pleito. Além disso, boa parte dos eleitores privilegia
critérios como a indicação de pastores ou o presumido compromisso de candidatos
com as suas regiões, em que a participação de vereadores na campanha tem enorme
influência. Não bastante, os deputados trataram de alterar as regras eleitorais
e, agora, poderão ser eleitos os mais votados entre os lançados por partidos
que não alcançarem quociente eleitoral, assim
viabilizando a reeleição de muitos deles. Foi ainda benéfica para os deputados
mais ricos (ou que representem pessoas com grandes fortunas) a decisão de que o
cidadão pode usar até 10% do seu rendimento na campanha.
É preciso usar o tempo que falta até a eleição para
deixar claro para o eleitor de Lula que eleição é vista em nossa sociedade como
uma forma de enganar os eleitores, levando-os a votarem sempre nos
representantes de interesses que não são seus. Esses serão assegurados por uma
bancada forte de senadores e deputados para aprovar as propostas de Lula. E é
preciso saber como fazer para conseguir fazer isso.
Fernando
Tolentino