terça-feira, 25 de abril de 2017

VOCÊ VAI FICAR DE FORA?



Há décadas não vejo uma só mobilização sem a prévia martelada de algum mau agouro do tipo “não vai dar em nada”.
Nos tempos terríveis da repressão militar, era mais compreensível. Os militantes eram gatos pingados, perigosos terroristas segundo pintava a propaganda oficial. As pessoas comuns nos temiam. Daí as mobilizações serem quase somente de estudantes ou por eles lideradas.
“Vocês estão dando murro em ponta de faca”, ouvíamos repetidamente, mesmo quando o regime vivia nos seus estertores, a maioria no Legislativo dependia de diversos casuísmos eleitorais e se via forçado a suspender a censura, além de conceder anistia política, ainda que limitada.
Em 1984, as oposições tomaram nas mãos a proposta de emenda apresentada nos primeiro dias de mandato pelo deputado estreante Dante de Oliveira, em que propunha nada menos que eleições diretas para presidente da República. E resolveram fazer justamente o que os brasileiros parecem nunca acreditar: reverter a sólida maioria parlamentar governista a partir de um grande movimento de massas.
Quantas vezes eu ouvi “não adianta”, “o povo não está nem aí pra política”, “vocês acham que os militares vão entregar o poder assim fácil!”
Foi nesse clima de descrença que viajei para o comício de São Paulo em janeiro de 1984. Fui com meu filho Iuri, então com 11 anos, e Moacyr de Oliveira Filho, também jornalista e militante do PCdoB, como eu à época. Imagine a surpresa ao nos aproximarmos da Praça da Sé e vermos grandes grupos em marcha, saindo de tudo quanto era esquina, das estações de metrô, eufóricos, muitos com camisetas preparadas para aquele evento.
Aguardávamos na rodoviária o ônibus da volta, ainda embriagados com a maravilhosa manifestação popular quando o apresentador do noticiário da TV Globo, a câmera fechada no palanque para não mostrar as 300 mil pessoas presentes, disse que lideranças políticas nacionais e inúmeros artistas haviam participado de uma festa de aniversário da cidade na Praça da Sé.
Foi só de janeiro a abril, mas a campanha das DIRETAS JÁ inflamou o País. Houve comício nas capitais de todos os estados e em muitas outras cidades, todos com grande número de presentes e enorme entusiasmo. Os exemplos pipocavam. Um amigo relatou-me, impressionado, a experiência reveladora de Irecê, interior da Bahia. Como só havia vereadores do PDS (partido que apoiava a ditadura), fora criada uma “tribuna popular” na Câmara, aberta ao cidadão comum em um dia da semana. Pois se formou uma fila de jovens da cidade que estudavam em Salvador e aproveitavam o espaço para defender as DIRETAS JÁ. Foi tal a pressão que, embora governistas, os vereadores acabaram aprovando, por unanimidade, um pedido para que os deputados votados na cidade apoiassem a emenda Dante de Oliveira.
Depois de muito cobrada nas ruas, a TV Globo passou a cobrir a campanha a partir de um dos últimos comícios, o segundo realizado no Rio de Janeiro.  
Os pessimistas incuráveis certamente dirão: “Mas a emenda não passou.” E é verdade. Faltaram 22 votos: 298 deputados votaram a favor, 58,1%, bem mais que a maioria. Só 67 votaram contra e 113 se ausentaram. Um claro sinal da força do movimento foi a rebeldia na bancada do PDS, que tinha 235 deputados.
A votação se deu com Brasília cercada pelos militares, para impedir a chegada de manifestantes, e tropas nas ruas para reprimir os atos políticos de brasilienses. A revolta diante da repressão e o apoio à emenda foi expressa por vigorosos buzinaços, que tomaram conta da cidade.  
E A DESCRENÇA CONTINUA
Depois de um ciclo de importantes conquistas sociais iniciado com a eleição de Lula em 2002 e de um golpe parlamentar e midiático, com sustentação ou omissão do Judiciário, assumiu um governo que já antecipara a sua determinação: favorecer os interesses dos grandes grupos econômicos, especialmente o setor financeiro, destruir o que houvesse de direitos dos trabalhadores e setores populares, além de promover intenso processo de desnacionalização da economia.
Faz somente um ano desde o afastamento da presidenta Dilma e a decretação do golpe em si ocorreu efetivamente no último dia de agosto, há oito meses.
Foi nesse período tão curto que um governo sem qualquer legitimidade popular conseguiu colocar para trabalhar um legislativo que parecia em greve durante um ano e meio do segundo mandato de Dilma Rousseff. A verdade é que nem na Constituinte deputados e senadores foram tão pródigos na aprovação de medidas legislativas, inclusive emendas à Constituição, que exigem o voto de três quintos dos deputados e dos senadores. Nenhuma dessas matérias, claro, beneficia a maioria dos brasileiros, especialmente o povo mais humilde.
Uma das emendas constitucionais veda que o governo amplie as despesas públicas por 20 anos, salvo no limite da inflação do período. É um arraso, prometendo o desmantelamento das áreas de saúde, educação e segurança, para não falar em outros investimentos governamentais e no arrocho contra os servidores públicos. Só se livrou a cara dos que se beneficiam com a parte do orçamento destinado a pagamento de juros.
Ao apagar das luzes de 2016, foi aprovado projeto de iniciativa de José Serra que permite a exploração do Pré Sal sem a participação da Petrobras, o que significou a perda da garantia de que o recursos teriam destinação social nas áreas de saúde e educação.
Não dá pra deixar de lembrar a mudança nas regras do ensino médio, que retira qualquer sentido crítico da educação pública, criando um fosso de formação entre os jovens que frequentam as escolas mantidas pelos governos e os das escolas privadas.
Outras medidas trouxeram prejuízos diretos para o trabalhador, como a redução no reajuste do salário mínimo e as novas regras para desfrutar do seguro-desemprego. Ao lado disso, desde o início do período de Temer à frente do governo, foram afetados vários programas sociais do governo e já há a promessa de que outros também vão desaparecer ou serão seriamente afetados. Nessa lista, incluem-se o Pronatec e o Ciência sem Fronteiras, praticamente extintos, redução substancial nos recursos para o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida, Mais Médicos, FIES, ProUNI e a perspectiva de desativação do Farmácia Popular.
Paralelamente, as instituições de ensino federal perderam a condição de investirem e as empresas estatais sofrem drástico enxugamento. Banco do Brasil, Caixa Econômica e Correios têm milhares de agências fechadas e servidores são demitidos, com ou sem planos de demissão voluntária.
Uma das investidas mais ousadas sobre os direitos dos trabalhadores veio no início de 2017, com a aprovação de lei de terceirização irrestrita da mão de obra. Ousada pela amplitude, pois não exclui atividade fim ou sequer a administração pública, além de precarizar o trabalho, com dispositivos como o que permite o contrato de experiência por nove meses. Mas ousada também pela forma, pois se desprezou projeto em andamento, já aprovado pela Câmara e sob análise do Senado, aprovando iniciativa submetida ao Legislativo ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso e que teve a sua retirada pedida pelo então presidente Lula no início de seu primeiro mandato, em 2003.
JÁ NÃO DÁ PRA ENGANAR NINGUÉM
A pauta que investe contra os interesses populares parece não se esgotar.
A tática da mídia governista, intensamente utilizada, tem sido a de desviar a atenção do público da agenda de perda de direitos, com o massacre de notícias sobre a Operação Lava Jato e as denúncias de corrupção.
O efeito não é o esperado. Um, porque ficou claro para a opinião pública, ainda que a mídia tente ofuscar, que a corrupção inunda a base governista, contaminando todas as suas principais lideranças e membros da equipe de governo. Tanto que já não se ouve falar dos que foram às ruas pedir o afastamento da presidenta Dilma. Dois, pois já não é possível enganar os que defendiam o “impeachment”: ele veio para subtrair direitos dos trabalhadores e das parcelas mais carentes da população, mas também das classes médias, incluindo os pequenos empresários, afetados pela perda de dinamismo da economia.
A agenda do governo tem no momento dois pontos cruciais, com a apreciação quase simultânea pelo Congresso de projeto que, de tão radical na representação dos interesses do capital, significa uma revogação tácita da CLT, que data de 1943 e vem sendo aperfeiçoada desde então, e mudanças profundas nas regras da Previdência Social, que retiram a expectativa de aposentadoria para os trabalhadores.
Mais à frente, já se anunciam novas medidas também prejudiciais às camadas historicamente mais desassistidas, como a exigência de submissão ao Congresso Nacional das demarcações de terras para comunidades indígenas.
Aos estados, pretende-se impor regras para a renegociação de suas dívidas que praticamente lhes obriga à repetição do modelo adotado pela União.
Parcelas substanciais da sociedade compreenderam o que se passa e reagem. Não são apenas centrais sindicais ou outros movimentos de representação dos setores mais pobres da sociedade, como os de trabalhadores rurais sem terra e moradores urbanos sem teto ou mesmo o movimento estudantil. Manifestam-se entidades que congregam juízes e procuradores do trabalho, denunciando que a Justiça Trabalhista simplesmente tende a desaparecer, e representações de igrejas, como a CNBB e as Igrejas Evangélicas Históricas.
É claro que a insatisfação popular atinge a base parlamentar do governo. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, a média de apoio ao governo na Câmara caiu de 91% (julho de 2016) para 79%. As reações mais recentes mostram rebeldia entre os partidos que apoiam o governo e a direção do PSB, que tem inclusive um ministro na equipe de Temer, já deixou claro que não votará a favor das duas reformas: a trabalhista e a da Previdência.
O governo já tentou adiversas manobras, aliviando dispositivos do projeto da Previdência que atingem grupos específicos. A tentativa mais enfática de sair do canto do ringue se dá, no entanto, com a imposição de celeridade na votação dessas matérias. Assim, questões tão importantes para o conjunto da sociedade são apreciadas sem qualquer debate com a população. Em outras palavras, dá mostras de que está fugindo da reação popular, quer dar o fato como consumado antes que as forças sociais tomem a iniciativa das ações.
E A GREVE GERAL?
Enquanto o governo impõe à base parlamentar submissão inconteste e rapidez nas decisões, chegamos às vésperas de um importante enfrentamento. Marcada para esta sexta-feira, 28, tudo indica que o Brasil finalmente terá uma Greve Geral capaz de trazer consequências concretas, valendo-se do já evidente isolamento social do governo.
Com o apoio de lideranças religiosas, personalidades jurídicas e intelectuais, entidades estudantis e de outros segmentos da sociedade, além das representações classistas, a Greve Geral promete ser mais representativa que todas as experiências anteriores de grandes paralisações nacionais.
Centenas de categorias já decidiram cruzar os braços e outras prometem evoluir para isso nas próximas horas, entre elas várias que são fundamentais para o funcionamento normal das próprias estruturas urbanas, como rodoviários, metroviários, portuários, professores, bancários, profissionais de saúde (inclusive médicos em alguns casos), servidores públicos federais, estaduais e municipais, policiais, vigilantes e vários outros segmentos de trabalhadores terceirizados, para citar somente alguns casos. Até escolas privadas, prefeituras e órgãos locais do Poder Judiciário decidiram-se por fechar as portas.
Muitos outros trabalhadores expressarão o apoio de outras formas, inclusive se negando a consumir o que quer que seja nesta sexta-feira.
Apesar disso, ainda é o caso de perguntar a cada pessoa insatisfeita. Você também vai cruzar os braços? Pelo menos apoiará explicitamente o movimento? Ou vai repetir a velha ladainha de que não adianta fazer nada?
Fernando Tolentino

Nenhum comentário:

Postar um comentário