terça-feira, 21 de junho de 2016

UM TEMPO DE VERGONHA PARA OS BRASILEIROS





O Brasil já viveu diversos períodos de que o povo não gostaria de lembrar.  Afinal, desde 1930, foram não menos de 36 anos de ditadura, diante de 50 em que os brasileiros tiveram liberdades democráticas. Para cada cinco anos de democracia, tivemos mais de três e meio de períodos autoritários. E as duas ditaduras tiveram fases de recrudescimento (o Estado Novo e o período que se seguiu ao Ato Institucional nº 5), evidenciando que não se saciavam com as perdas de liberdade que já haviam imposto.
Tem mais. Naqueles 50 anos de democracia, presidentes eleitos completaram os seus mandatos em somente 30 anos: o general Eurico Dutra (1946 a 1951); Juscelino Kubitschek (1956 a 1961); Fernando Henrique Cardoso, duas vezes (1995 a 2003); Lula, também por dois períodos (2003 a 2011); Dilma, no seu primeiro mandato (2011 a 2015). Mais anos de ditadura que de governos de presidentes eleitos com mandatos integralmente cumpridos!
Apesar dessa terrível tendência do País para a instabilidade política, é perfeitamente possível afirmar que jamais houve motivo para o povo envergonhar-se tanto de si mesmo quanto hoje.
Explico. Houve sempre um certo respaldo popular para o desrespeito por mandatos presidenciais. Getúlio se viu compelido ao suicídio (1954) diante da incapacidade de controlar as forças políticas reacionárias, com eco nas ruas, deixando uma Carta Testamento para que cumprisse o que esperava um papel pedagógico definitivo. Pouco adiantou. João Goulart (que substituíra Jânio Quadros) abandonou o governo e saiu do Brasil, diante do golpe militar de abril de 1964, temendo que se desferisse uma guerra civil e derramamento de sangue. O afastamento de Fernando Collor foi precedido de ampla mobilização popular, motivada pela insatisfação com o seu governo e pela onda de corrupção que chegava até o Palácio do Planalto. Mas jamais deu para creditar ao povo a responsabilidade pela ruptura.
UM NÓ INSTITUCIONAL
É o afastamento preliminar de Dilma Rousseff quem finalmente traz ao Brasil a crescente consciência de que foi justamente o voto popular que deu causa a um impasse aparentemente incontornável.
Na sequência de dois governos abertamente neoliberais (Fernando Henrique), os brasileiros escolheram um governo de compromisso prioritariamente social e desenvolvimentista, com Lula, que já lhes propunha essa saída desde 1989, em quatro pleitos sucessivos.
Seu primeiro mandato foi tumultuado pelas denúncias do chamado Mensalão e pela forte oposição da mídia. Mas o apoio popular e sua habilidade pessoal para a negociação política permitiram conduzir o governo, mesmo com uma maioria parlamentar conservadora nas duas casas do Congresso Nacional. Com isso, conseguiu a reeleição, embora tendo que ceder espaço ao crescimento das forças conservadoras no Legislativo. Ainda assim, concluiu o segundo período com grande prestígio pessoal, suficiente para eleger Dilma Rousseff, virgem em experiência eleitoral. O fato é que ela ainda se deparou com menos apoio parlamentar, tendo que fazer composições com forças de questionável lealdade, movida quase exclusivamente por interesses fisiológicos. Como se não bastasse, seu mandato foi abalroado pelos efeitos da crise internacional de 2008, que contaminaram também os países para os quais o Brasil voltara suas relações comerciais.
Identificando uma liderança politicamente mais frágil que Lula e aproveitando-se das dificuldades econômicas, a mídia recrudesceu o ataque, levando a que Dilma se reelegesse em condições muito mais difíceis que no pleito anterior. Sua vitória em segundo turno, com uma vantagem de 3,5 milhões de votos, representou uma diferença de 3,28%, o que animou as forças conservadoras a que jamais reconhecessem a derrota.
Na verdade, por trás desse inconformismo estava muito mais que a pequena margem de votos de vantagem. Os adversários tinham clareza das armas de que dispunham: (1) um respaldo razoável no Poder Judiciário, especialmente no TSE e no STF, e praticamente absoluto no Tribunal de Contas; (2) a possibilidade de articular uma consistente maioria parlamentar na Câmara e no Senado; (3) a integral solidariedade da grande mídia, determinada a corroer a popularidade de Dilma.
O projeto era claro e era confessado publicamente por diversas lideranças políticas. Tratava-se de impedir que a presidenta concluísse o seu mandato ou, no mínimo que “sangrasse”, ficando sem qualquer possibilidade de governar.
Pedido de recontagem de votos, questionamento das contas da campanha, atrasos na votação do orçamento. Sucessivamente, eram colocados os obstáculos a que o governo seguisse o seu caminho. Vamos lembrar que o PSDB, partido do candidato derrotado, encomendou um parecer sobre “impeachment” ainda nos primeiros dias do segundo mandato de Dilma. Diante de uma crise econômica de proporções consideráveis, a oposição congressual sequer teve constrangimento de anunciar sua tática para implodir a capacidade de Dilma governar. O presidente da Câmara definiu o que chamou de “pauta bomba”, ou seja, a aprovação de medidas legislativas voltadas para inviabilizar o andamento do governo.
Paralelamente, desenvolviam-se as investigações da Operação Lava Jato. Embora não tenha havido qualquer sinal de envolvimento da presidenta, o discurso oposicionista e a pauta da mídia sinalizava justamente o contrário, além de insistentemente buscar responsabilizá-la pelo insucesso na compra da refinaria de Pasadena.
Em outras palavras, o governo se via na obrigação de negar compromissos assumidos em campanha, na medida em que buscava enfrentar a crise econômica com ajustes orçamentários; o Congresso impedia que esse ajuste efetivamente se exercesse, levando ao aprofundamento da crise; a opinião pública era diariamente contaminada pela ideia de que a presidenta estivesse diretamente ou indiretamente envolvida com corrupção; enorme esforço político e midiático foi desenvolvido no sentido de promover manifestações de massa contra o governo, nas quais se propunha declaradamente a deposição da presidenta. É significativo que a primeira e maior delas tenha se dado em março de 2015, apenas dois meses após a posse.
Com apenas um ano e quatro meses, Dilma teve iniciado o seu processo de afastamento pela Câmara, pretextado por crimes de responsabilidade que efetivamente não cometeu.
O então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, não teve o menor constrangimento de anunciar que admitiria o andamento do processo de “impeachment” caso lhe fossem negados na Comissão de Ética os votos do PT para determinar o arquivamento do seu próprio processo de cassação.
Em entrevista coletiva desta terça-feira, voltou a evidenciar essa atitude ao declarar: “Tenho a consciência tranquila que livrar o Brasil da Dilma e do PT será uma marca que terei a honra de carregar”.
Foi uma entrevista de um moribundo, que não conseguiu atrair um só dos mais de 200 deputados que mantinha sob o seu comando. Anunciara como se, ali, fosse desencadear efeitos avassaladores. Não se sabe a que preço, “a montanha pariu um rato”. Só o rato.
Se algum tumulto causar, não foi nessa entrevista, que sequer justificou holofotes e plantonistas escalados para acompanhá-la.
A VERGONHA ABORTOU O PARLAMENTARISMO
A eleição de 2014 deixou escrachadamente clara uma tendência que já se insinuava desde a primeira vitória de Lula, em 2003. O voto progressista para presidente não se reflete no que a população dá ao compor a Câmara e o Senado.
A Câmara tem deputados de 31 partidos e esses parlamentares pouco ou nada tem a ver com a maior parte dessas agremiações. Eles se articulam, em verdade, por compromissos com grupos que os elegeram ou financiaram as suas campanhas. É notória a força da articulação das bancadas ruralista, evangélica e ligada à indústria de armas (conhecida como BBB, numa alusão a Bíblia, Boi e Bala), que se comprometem com pautas de interesse dos três grupos, tornando-a quase imbatível na atual legislatura. Muitos deles teriam sido eleitos com apoio (inclusive financeiro) de Eduardo Cunha, o que o fez virtual líder desse conjunto de forças. Embora com atuação menos agressiva, é fato que, entre os 81 senadores, nada menos de 32 são vinculados ao setor agropecuário e 36 ao empresarial, além de quatro evangélicos.
A clareza desse viés profundamente conservador leva a que esses agrupamentos de parlamentares e os grupos que os respaldam queiram tirar o máximo proveito possível da circunstância de praticamente sufocarem as forças políticas que ousam enfrentá-la. E têm pressa.
Ao lado da já amplamente conhecida expectativa de que a saída de Dilma Rousseff viabilizasse a paralisação das investigações da Lava Jato, a outra vertente é essa ansiedade pela destruição de direitos sociais e trabalhistas. O terceiro fator é o interesse de grupos internacionais na exploração das jazidas petrolíferas do Pré Sal, aliado ao de grupos empresariais que querem desguarnecer o Estado de instrumentos públicos como os seus bancos, a ECT e até a EBC.
É dessa convicção de que os interesses conservadores conseguem controlar mais efetivamente o Poder Legislativo que nasceram as propostas de retomada do parlamentarismo, inclusive as de subordinação do Executivo ao Legislativo que pontuam a Ponte para o Futuro, programa político assumido por Michel Temer.
Contraditoriamente, as mesmas investigações que foram utilizadas para tornar simpático à população o processo de afastamento de Dilma são as que vão jogando por terra os devaneios parlamentaristas.
De um lado, é inescapável à percepção da sociedade que nenhuma mácula existe a toldar moralmente a biografia de Dilma.
Não é nem minimamente próxima disso a imagem das forças que lhe subtraíram, ao menos provisoriamente, o poder. Até parece que os membros do governo Temer foram escolhidos nas listas de envolvidos nos vários escândalos de corrupção ora sendo apurados. Uns por serem diretamente citados em delações premiadas como beneficiários de propinas, outros como em articulações para a paralisação das investigações, já foram quatro os nomes de primeiro escalão afastados nos primeiros 40 dias de governo: ministros do Planejamento, da Transparência, da AGU e do Turismo. Tem-se como certo que o da Educação não tarda a cair e avolumam-se as acusações contra o secretário de Governo e o ministro da Casa Civil.
Não deve ficar por aí. O líder do governo na Câmara é indiciado até por homicídio, o do Senado é citado na Lava Jato. O próprio presidente interino é referido 24 vezes na propalada delação premiada de Sérgio Machado, ameaçando disputar o pódio com o senador Aécio Neves (PSDB), e já foi confirmado que é sua a voz de conversa que negou ter tido com o denunciante.
Antes de tudo, a imagem maior de Eduardo Cunha, surgido como sócio (talvez majoritário) do governo provisório, de quem hoje Temer parece querer se desvencilhar, ao menos aos olhos do povo. Ainda não está claro se é “a outra” ou “a ex”, uma figura normalmente incômoda na política.
O governo chegou ao desplante de nomear para secretário de Futebol do Ministério dos Esportes o proprietário do helicóptero apreendido com 430 kg de pasta básica de cocaína em novembro de 2013, chegando a ensejar a piada de que será abolido o exame anti-dopping no futebol nacional.
As bancadas da Câmara e do Senado que apoiam o afastamento de Dilma estão repletas de políticos indiciados, acusados, investigados ou claramente suspeitos.
À medida que as investigações avançam nos diferentes casos de corrupção, aumenta o número de envolvidos, desmentindo cabalmente a impressão tão disseminada antes do início do processo de afastamento de Dilma de que o seu partido tivesse “inventado” a corrupção. Nesta semana, a Operação Turbulência, da Polícia Federal, aproxima-se bastante do financiamento da campanha de Eduardo Campos (PSB), de quem Marina Silva herdou a vaga na disputa de 2014.
A delação de Sérgio Machado, que foi senador e líder do PSDB e diretor da Transpetro por indicação do PMDB durante longos dez anos, não deixa dúvida de que são antigas as raízes da corrupção ligada à política. Ele fala em 1946 e não deixa dúvida de que a propinorreia não apenas havia com Fernando Henrique, mas se manteve nos governos de Lula e Dilma justamente por conta da absorção de partidos que, antes, apoiavam os tucanos e mudaram de lado para manter espaços no governo.
Por fim, fica cabalmente demonstrado que a força da proposta de golpe ainda se mantém porque os políticos sobre os quais se concentra a responsabilidade de afastar Dilma definitivamente do seu mandato não se vergaram à evidência de que não se engana mais a população. E mais: o governo Temer não hesita em atraí-los com o mesmo tipo de negociação que levou aos horrores ora investigados.
O que se mostra é um verdadeiro mercado persa, tudo indicando que senadores assumem ares de indecisão para aumentar o valor do resgate, repetindo a postura de bancadas de deputados às vésperas da decisão sobre a admissibilidade do processo. O governo Temer diz sim. Há poucos dias, o senador Romário (PSB-RJ), o esperto baixinho do futebol, reviu sua posição de indeciso após apresentar ao presidente o pleito da presidência de Furnas. Nesta semana, vazou a exigência do senador Hélio José (PMDB-DF) de indicar os titulares de 34 cargos, inclusive o presidente de Itaipu e um diretor do Banco do Brasil, entre outros.
Os próprios parlamentares parecem já terem claro que a opinião pública não veria com bons olhos entregar o governo pra esse tipo de negociata e o “parlamentarismo” vai celeremente caminhando para o brejo.
Fernando Tolentino

Nenhum comentário:

Postar um comentário