segunda-feira, 9 de junho de 2014

O GORDO SALVADOR

Nelson Rodrigues
Nenhum gordo gosta de ser gordo. Sobe na balança e tem um incoercível pudor, uma vergonha convulsiva do próprio peso. E, no entanto, vejam: — pior do que ser gordo é o inverso, quer dizer, pior do que ser gordo é ser magro. Digo isto a propósito de Feola* , o meu personagem da semana. Ele está em Araxá e eu aqui. A despeito da distância, porém, é como se eu o estivesse vendo com a doce, a generosa cordialidade que é o clima dos gordos de todos os tempos. E aqui pergunto: — um Feola magro teria sido melhor para o escrete?
Não creio e explico. É preciso ver os magros com a pulga atrás da orelha. São perigosos, suscetíveis de paixões, de rancores, de fúrias tremendas. E, até hoje, que eu me lembre, todos os canalhas que conheci são, fatalmente, magros. Acredito que Feola esteja no profundo e amargo arrependimento de ser gordo. Mas, se assim for, temos de admitir a sua ingenuidade. Pois uma de suas consideráveis vantagens de homem e, atrevo-me a dizê-lo, de técnico está nesta circunstância, que ele deplora e repudia. Numa terra de neurastênicos, deprimidos e irritados, convém ter o macio, o inefável humor dos gordos. A banha lubrifica as reações, amacia os sentimentos, amortece os ódios, predispõe ao amor.
Nós temos, aqui, um preconceito, de todo improcedente, contra a barriga. Erro crasso. Na verdade, há uma relação sutil, mas indiscutível, entre a barriga e o êxito, entre a barriga e a glória. Examinem a figura de Napoleão como imperador. Era ele, na ocasião, algum depauperado? Não, senhor. Pelo contrário: — os quadros mostram a inequívoca e imperial barriga napoleônica. E uma das coisas que me levam a acreditar no Brasil como campeão do mundo é o fato de termos, finalmente, um técnico gordo.
O leitor pode perguntar, com certa irritação: — e que importância tem que o técnico seja magro ou não? Muita. De fato, dirigir um escrete, no Brasil, é um dos mais pesados encargos terrenos. O sujeito está cercado de palpites por todos os lados. Digo “cercado de palpites” e acrescento: — de palpiteiros. O técnico tem, no mínimo, duzentas irritações por dia. E, além do mais, não há função mais polêmica. Tudo o que ele faça suscita debates no país inteiro. Há sujeitos que vivem, dia e noite, tramando a sua desgraça. E das duas uma: ou ele tem uma inexpugnável sanidade mental ou acaba maluco e a família não sabe. Só um gordo, repito, possui por natureza a euforia necessária para resistir às crises de um escrete.
Por exemplo: — observem o comportamento de Feola na preparação do escrete em Poços de Caldas e Araxá. Nada o perturba, nada o irrita. Não subiu pelas paredes nenhuma vez, não gritou, não xingou a mãe de ninguém. Sabemos que há técnicos no Brasil e, por coincidência, magros, que acham bonito e eficaz tratar o craque a pontapés. Feola, nunca. Podem fazer todas as ondas do céu e da terra. Ele permanecerá com sua alegria imbatível — constante, ininterrupta alegria. E esse bom humor quebra e desmoraliza qualquer resistência. De resto, não desafia, não discute, não ofende. Faz o que quer, e só o que quer, da maneira mais discreta, insidiosa e, direi mesmo, imperceptível.
Não se sente a autoridade de Feola que, entretanto, é militante, irredutível. Sim, amigos: — não esbraveja, não estrebucha, nem todos percebem que ele é o único que manda, o único que decide. E ninguém se iluda: — a sua abundante cordialidade de gordo é o disfarce de um maquiavelismo benéfico e criador. Esse técnico sem histeria, insuscetível de irritações, fazia falta num futebol de emotivos, de irritados, como o nosso.
Eu disse que Feola não perdia nunca o bom humor e já retifico: há uma maneira, sim, de enfurecê-lo. É chamá-lo de gordo. Então, ele pula e esbraveja como um caluniado.
Publicado originalmente na Manchete Esportiva, em 3/5/1958

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