sábado, 1 de março de 2014

NÃO É PELOS 20 CENTAVOS




Um dos bons prazeres do tempo de jovem estudante de Administração Pública (final da década de 60) era nos reunirmos, estudantes de esquerda, em volta de Vital Duarte, nosso professor de Geografia Econômica, para conversar sobre política e filosofia. Vital era um tipo curioso. Pequeno, frágil, mas vibrante, apresentava-se aos alunos como “comunista e rico”, forçando a contradição. Técnico do Banco do Nordeste, comprava nas mãos dos colegas as ações distribuídas como Participação nos Lucros ao final de cada ano. Elas não tinham praticamente valor e ele as juntava caprichosamente, até que a Bolsa de Valores teve um pico e ele, realmente, acumulou um enorme capital. Depois, perdeu parte significativa quando a Bolsa quebrou.
Mas eu trago Vital à conversa para lembrar que – sentado àquela mesa, que cobria com forro de plástico, para poder rabiscar à vontade enquanto falava – ele pontificava entre os jovens, vinculados alguns a diferentes forças políticas, como eu à AP (Ação Popular) e Adelson ao Partidão (PCB). Não foi à toa que tornou-se patrono de nossa turma. E dizia o saudoso Vital: “Se estão realmente devotados à causa socialista, tenham clareza que lutarão noite e dia, diante dos maiores sacrifícios, pela construção de uma sociedade em que não chegarão a viver.” E insistia: “É preciso ter essa grandeza. Dedicar a vida para que outras gerações possam conhecer o socialismo.”
Vital lutou a vida toda e faleceu precocemente, muito longe de ver o Brasil socialista.
Nós, reformistas ou revolucionários, éramos absolutamente inconformados com a estrutura fortemente excludente da sociedade brasileira. Cada um acreditava em seu método, tinha a sua visão de como deveria promover mudanças radicais para que todos tivessem acesso aos frutos do que era produzido pela Nação.
No meio, a necessidade de pôr fim à ditadura, que servia aos interesses das elites, justamente com o objetivo de manter (e aprofundar) a exploração, até porque se associavam ao capital internacional, sequioso de obter resultados compensadores nos países de sua esfera de influência.
É preciso lembrar-se daquela reflexão do velho mestre para entender que posso me sentir inteiramente representado no projeto de poder atualmente em curso sob a liderança do Partido dos Trabalhadores. Não viverei em uma sociedade socialista. Mais que isso, sei das enormes dificuldades para que sequer possamos ter um governo que execute um programa marcadamente petista. Tenho claro que o PT não tem o poder. Quando muito divide uma parte desse poder com outras forças políticas, entre elas vários partidos de corte nitidamente conservador. O PT tem apenas a liderança do processo político, que lhe é conferida pela eleição direta para a chefia do Poder Executivo. Com Lula nos primeiros oito anos e, agora, com Dilma.
O PT tem que dividir o próprio governo com esses partidos, que interferem decisivamente nas decisões governamentais. Além disso, é minoritário na base que lhe dá sustentação no Parlamento. Grande parte das decisões tem ainda que ser negociada com governadores ou prefeitos majoritariamente ligados a outros partidos. Para não falar das dificuldades nas relações com o Tribunal de Contas (com composição em que o PT praticamente não influiu) e com o Judiciário em geral.
É sempre bom destacar que o aparato legislativo foi herdado de períodos anteriores e são mínimas as possibilidade de promover alterações, só possíveis a partir de inúmeras negociações, em que inclusive se tem de abrir mão de questões importantes.
Não falta quem se questione na esquerda se vale mesmo a pena assumir a responsabilidade de conduzir um processo assim tão contingenciado por limitações. E há muitas outras que o caráter desse artigo não recomenda enumerar exaustivamente.
Essa discussão tomou conta até dos debates internos do PT e, em boa medida, está no vértice de várias defecções, inclusive as que deram origem a partidos como PSTU e PSOL.
De fato, se o PT fosse um partido comprometido exclusivamente com a classe média, em que não é pequena a expectativa de melhorar rapidamente suas condições de vida, seria preferível fazer uma opção oposicionista. Evitar as vitórias eleitorais para o Poder Executivo e manter-se nos microfones parlamentares e à frente de sindicatos e outras entidades populares, exibindo suas críticas e repetindo as suas reivindicações.
Os anos de governos de liderança petista, no governo federal ou mesmo nos estaduais e municipais, têm evidenciado frequentes confrontações com diferentes segmentos da classe média, especialmente categorias de servidores públicos.
De minha parte, entro em um ano eleitoral, no qual o PT disputará a permanência na Presidência da República e a liderança de governos em quase todos os estados, com a clara convicção de que a realidade brasileira avança na direção que me empolgou na já distante juventude.
Para o socialismo? Que é isso, companheiro. Há muito chão pra caminhar até que possamos alimentar esse sonho.
É claro que há muito por fazer, é provável até que algumas conquistas não tenham sido obtidas e pudessem receber maior atenção. Afinal, já lembramos que o PT dirige um governo em constante luta interna. E isso se repete em estados e municípios que governa.
Mas é possível dizer que, apesar de todas as dificuldades, mesmo considerando que esse processo começou com um país literalmente quebrado, tem sido extraordinário o avanço nas condições de vida de imensos contingentes de brasileiros, muitos dos quais sequer imaginavam o que era o mercado consumidor.
A nova classe média brasileira (renda familiar mensal entre R$ 1 mil a R$ 4 mil) representa hoje metade da população. Segundo o Instituto Data Popular, esse grupo ampliou o seu consumo em supermercados de 28 categorias de produtos em 2002 para 40 em 2011. Foi um aumento de mais de 42 milhões de brasileiros em uma década. Mais de 12 milhões deixaram a condição de miseráveis.
Segundo o Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPS/FGV), o índice de Gini (que mede a desigualdade socioeconômica) caiu de 0,596 em 2001 para 0,519 em janeiro de 2012 no Brasil. Ou seja, a desigualdade entre os extremos tem sido reduzida.
No meio do processo desencadeado pelos governos sob a liderança do PT, o mundo entrou em forte crise econômica. A Europa ainda se debate com ela e não vê uma saída próxima. Vários países europeus quebraram. Com os parâmetros tradicionais da economia brasileira, isso jogaria o País nos braços do FMI e, como sabemos, em uma depressão incontrolável, com desemprego, quebra de milhares de empresas e consequências terríveis em inúmeros setores, inclusive as contas públicas.
Os efeitos sobre o Brasil foram significativamente minimizados. Para começar, o governo havia diversificado o comércio internacional, em que passaram a ter papeis destacados a China, a América Latina, a África e o Oriente Médio. Com isso, importamos menos dificuldades da situação dos Estados Unidos e, depois, da Europa.
Por outro lado, o mercado interno ampliou-se e descentralizou-se de forma espetacular. O salário mínimo cresceu, de pouco mais de US$ 60 para mais de US$ 300.  Foi também fundamental a instituição do programa Bolsa Família, beneficiando milhões de famílias distribuídas justamente nas regiões mais pobres do País. O programa vem sendo incrementando e terá este ano R$ 24,65 bilhões.
Outros programas governamentais também serviram para o enfrentamento da crise e a melhoria das condições de vida do povo. Como o Minha Casa Minha Vida. Para se ter uma ideia, o Ministério das Cidades terá uma dotação de R$ 21,66 bilhões neste ano.
A interiorização do ensino também contribuiu. O número de municípios atendidos por universidades cresceu de 114 para 237 entre em 2003 e 2011. Foram 14 novas universidades e mais de 100 novos campi até então. Além disso, mais de meio milhão de estudantes beneficiaram-se do ProUni.
O crescimento do número de escolas técnicas foi espetacular: 240 só considerando o período de Lula, diante de 119 em todo o período republicano.
Outro dado que sequer é preciso mensurar, até porque sofre também a influência do investimento na área educacional, mas é inquestionável foi a retomada dos concursos públicos, beneficiando um contingente enorme de brasileiros.
É claro que esse artigo não pretende esgotar ações governamentais ou benefícios para a população brasileira, limitando-se a lembrar aspectos que venho acompanhando da nossa realidade e que me levam a refletir sobre a validade do projeto petista de chegar ao poder e, com isso, alterar a trajetória de exclusão que marcou a sociedade brasileira nos seus primeiros 500 anos, com breves intervalos de governos que buscaram atender os anseios da população trabalhadora, como os governos trabalhistas de Getúlio Vargas e João Goulart.
Qualquer um de vocês poderia listar o Luz para Todos, o SAMU, a distribuição de equipamentos ou ônibus escolares para as prefeituras. Poderia lembrar da política de cotas, da presença em aviões de pessoas que só os viam no céu, do acesso aos automóveis e mais uma infinidade de coisas.
O programa mais recente que traz esse compromisso de resgate das populações desassistidas é o Mais Médicos. Este ano os seus recursos aumentam de R$ 540 milhões para R$ 1,51 bilhão. O programa já conta com mais de 9.500 profissionais, atendendo em um número superior a dois mil municípios e 28 distritos indígenas. Inicialmente, o programa foi aberto para médicos brasileiros, sendo suplementados com originários de vários outros países, sendo 7.400 cubanos. Para se ter uma ideia, isso significou mais de 500 mil consultas mensais só na Bahia, atendendo populações que não tinham acesso a médicos.
Os resultados na economia acabaram sendo positivos relativamente à problemática vivida por todo mundo. Se o crescimento do PIB do Brasil foi tímido em 2013, o fato é que ficou entre os maiores do mundo, distante apenas da China e Coreia do Sul. Superado por apenas oito economias, mas ultrapassando as de vários países entre os mais ricos, notadamente os Estados Unidos, o Reino Unido e a Alemanha.
A inflação, apontada como um fantasma por diversos comentaristas econômicos, mantém-se controlada. O período de governo de Dilma Rousseff tem uma média anual de 6,08%, maior que os 5,77% do governo de Lula, mas bem aquém da média do dois governos de Fernando Henrique, que atingiu 9,1%.
E, o mais importante para os setores populares, o Brasil pode ostentar um dos menores índices de desemprego do mundo: 5,4%. Para citar apenas alguns exemplos, os Estados Unidos estão com 7%, a França com 11%, Portugal com 16,3%, enquanto a Espanha chega a 26,2%.
Tenho que concluir: vale muito a pena lutar por esse projeto. Não é o melhor dos mundos. E estamos muito distantes do socialismo. Mas  disso o velho Vital já tinha me advertido.
Fernando Tolentino


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